terça-feira, outubro 15, 2013

BIBLIOGRAFIA

1. Ebraico, L. C. de M. A Nova Conversa. Rio: Ediouro, 2004;
1. Eizirik, C et. al. Psicoterapia de Orientação Analítica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1989;
2. Fenichel, O. Problemas de Técnica Psicanalítica;
3. Freud, S.[1]
1888 * Crítica de Der Hypnotismus, de Forel (1889a)
1888 * Introdução à tradução de De la Suggestion, de Bernheim (1888-9)
1890 * ‘Tratamento Psíquico (ou Mental)’ (1890a)
1891 * ‘Hipnose’ em Therapeutisches Lexikon, de Bum (1891d)
1892 * ‘Um Caso de Tratamento Bem Sucedido pelo Hipnotismo’ (1892-93b)
1895 Estudos sobre a Histeria, Parte IV (1895d)
1898 ‘A Sexualidade na Etiologia das Neuroses’ (última parte) (1898a)
1899 A Interpretação dos Sonhos, Capítulo H (primeira parte) (1900a)
1901 ‘Fragmento de uma Análise de um Caso de Histeria’, Capítulo IV (1905e)
1903 ‘O Procedimento Psicanalítico de Freud’ (1904a)
1904 ‘Sobre a Psicoterapia’ (1905a)
1910 ‘As Perspectivas Futuras da Terapia Psicanalítica’ (1910d)
1910 ‘Psicanálise “Silvestre”’ (1910k)
1911 ‘O Manejo da Interpretação de Sonhos na Psicanálise’ (1911e)
1912 ‘A Dinâmica da Transferência’ (1912b)
1912 ‘Recomendações aos Médicos que Exercem a Psicanálise’ (1912e)
1913 ‘Sobre o Início do Tratamento’ (1913c)
1914 ‘Fausse Reconnaissance (“déjà raconté”) no Tratamento Psicanalítico’ (1914a)
1914 ‘Recordar, Repetir e Elaborar’ (1914g)
1914 ‘Observações sobre o Amor Transferencial’ (1915a)
1917 Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferências XXVII e XXVIII (1916-17)
1918 ‘Linhas de Avanço na Terapia Psicanalítica’ (1919a)
1920 Além do Princípio de Prazer, Capítulo III (1920g)
1923 ‘Considerações sobre a Teoria e Prática da Interpretação de Sonhos’ (1923c)
1926 A Questão da Análise Leiga, Capítulo V (1926e)
1932 Novas Conferências Introdutórias sobre Psicanálise, Conferência XXXIV (última parte) (1933a)
1937 ‘Análise Terminável e Interminável’ (1937c)
1937 ‘Construções em Análise’ (1937d)
1938 Compêndio de Psicanálise, Capítulo VI (1940a)
4. Greenson, R. R. A Técnica e a Prática da Psicanálise.
5. McKinnon & Michels. A Entrevista Psiquiátrica na Prática Clínica.

[1] A data ao início de cada título é a do ano durante o qual o trabalho em apreço foi provavelmente escrito. A data ao final é a da publicação, e sob esta data pormenores mais completos da obra serão encontrados na Biblio-grafia e Índice Remissivo de Autores.4.

sábado, fevereiro 09, 2008

TÉCNICA LOGANALÍTICA: PRIMEIRO ENCONTRO

NOTAS SOBRE O LIVRO "PSICOTERAPIA DE ORIENTAÇÃO ANALÍTICA DE EIZIRIK, AGUIAR, SCHESTATSKI et al." (cf. Bibliografia)

(Estas minhas notas e os textos a que se referem servirão para debates em encontros sobre psicanálise de orientação loganalítica e abordarão os vários assuntos na ordem em que se encontram no sumário do livro. Na maior parte das vezes, o referidos textos serão reproduzidos aqui em sua íntegra.)

1. INTRODUÇÃO:

1.1. “No que se refere aos aspectos de Tratamento (incluindo uma Teoria da Técnica Psicoterápica), a Psicanálise ainda se encontra no mesmo “estado rudimentar e fragmentário” que Rapaport identificou em 1960 Willerstein, 1986), com as várias indefinições, incertezas e decorrentes polêmicas conceituais e metodológicas ainda presentes e à espera de u m esforço mais amplo e concentrado de pesquisa sistemática que possa preencher os inúmeros hiatos teórico-práticos que seguem persistindo.” (Eizirik, op. cit., p. 16)

Concordamos com os autores sobre que, de fato, nos ressentimos da falta de uma "Teoria Geral da Técnica Psicoterápica", que nos permitiria entender por que determinados tipos de terapia são mais eficazes para determinados tipos de pacientes do que para outros etc.. Na medida do possível, tentaremos contribuir para que a construção de uma tal teoria se torne um dia possível.

No que diz respeito particularmente à Psicanálise, fica em dúvida, inclusive, o que seja ela:

"... o Comitê de Avaliação da Terapia Psicanalítica da Associação Americana de Psicanálise dispersou-se em 1953, após seis anos e meio de infrutífero debate voltado para a tentativa de encontrar uma definição aceitável da terapia psicanalítica” (Greenson, R.R. The Technique and Practice of Psychoanalysis. Nova Iorque: International Universities Press, 1975, p. 2; grifo meu)

Por que tal ambigüidade relativamente ao que seja Psicanálise, ou terapia psicanalítica, ou terapia analítica, termos que usarei de forma sinonímica por razões que logo irei expor?
Essencialmente pelo fato de que, nos debates sobre a matéria, tenta-se associar o nome Psicanálise a uma técnica , não a uma estratégia. Para enriquecer nosso debate sobre a diferença entre os significados desses dois termos, vou empregar um texto retirado de meu livro, A Nova Conversa . Hoje, já faria algumas alterações nas posições que sustento ali, mas são pequenas e deixarei para debatê-las em sala de aula. Respondendo à pergunta sobre o “porquê” de tal comitê se haver dissolvido, desistindo que cumprir a tarefa a que se propôs, escrevi o seguinte.

[No texto a seguir, aparecerão vários termos – como “desejo de palavra”, “memória hipertônica” etc. – que ainda não definimos, mas isso fará parte de nossos debates].

“Porque estavam tentando fixar técnica e, não, estratégia e, certamente, em algum canto da cabeça dos senhores membros do comitê sobrevivera a rasteira noção de que para que uma ciência aplicada adequadamente se desenvolva cabe, sim, fixar seus objetivos – no caso [da Psicanálise], ampliar a representação verbal nos seres humanos – mas, nunca, os instrumentos e técnicas por meio dos quais esses objetivos devem ser buscados.

Os responsáveis pelo espetacular desenvolvimento da aviação devem seu tremendo sucesso a não se haverem desviado do fato notório e chão de que seu objetivo era voar melhor, não o de preservar a “pureza” do primeiro avião ou a memória de quem o inventou.

Se comparada à gloriosa História da Aviação, a História da Psicanálise faz pena. A disparatada perda de discriminação entre técnica e estratégia acabou dando origem a dois grupos igualmente ridículos: o dos “fechados para tudo” – que, para não deixar escapar por entre seus dedos o espírito de uma estratégia que não haviam suficientemente assimilado, consideravam por demais perigoso alterar em um átimo sequer a técnica freudiana – e o dos “abertos para o nada” – que, em nome da liberdade técnica, perderam, de fato, o norte da estratégia a que deveriam supostamente servir. Uns preservaram a “pureza” do primeiro avião, outros mexeram tão tontamente nele que o transformaram em uma máquina de lavar roupa...

É tempo de corrigirmos essa confusão. Embora estrategicamente correto – e esse é seu grande mérito – Freud empregou uma técnica – e essa é sua grande falha – que padece de uma limitação essencial: optou por privilegiar como seu instrumento técnico principal a interpretação pelo analista dos fatos ocorridos na relação entre ele e seu paciente. A parte o fato de a interpretação ser apenas um, talvez não dos melhores, entre os instrumentos capazes de eutonizar memórias hipertônicas, a preferência dada pela técnica freudiana, entre a miríade de interpretações possíveis, àquelas que se voltam sobre os fenômenos ocorridos durante as sessões teve, para citar apenas um dentre seus percalços, a concretíssima e onerosa conseqüência de exigir, para ser adequadamente exercida, um alto número de encontros semanais entre o psicanalista e seu paciente, alçando o custo do tratamento a níveis estratosféricos, proibitivos para a esmagadora maioria da população.
..........
O exposto até aqui nos permite compreender mais amplamente as conseqüências do bloqueio da satisfação dos Desejos de Palavra, seja, do recalque: esse bloqueio estreita nosso processo respiratório, tirando nossa serenidade e provocando disforias; insatisfeito, o Desejo de Palavra apossa-se, para seus fins, de outras funções, causando impropriedade funcional; além disso, o recalque reduz a amplitude de nossa consciência, dificultando o acesso simultâneo às informações, o que diminui nossa racionalidade; a diminuição da racionalidade, por sua vez, desacredita o governo do “eu”, provocando distúrbios de nossa autogestão.

Impedir a satisfação do Desejo de Palavra atinge desfavoravelmente, portanto, todas as quatro características universais da saúde psicológica.

Recalcar, na verdade, é a maneira cientificamente mais garantida de se produzir um neurótico.

TO SHRINK OR NOT TO SHRINK?

Posto isso, nada mais razoável do que esperarmos haver consenso prático e teórico, entre profissionais de saúde mental, sobre que o objetivo de qualquer tratamento da neurose seria dissolver recalques, satisfazendo Desejos de Palavra insatisfeitos e ampliando consciências estreitadas. Infelizmente, não é bem assim e a ausência de tal consenso foi magistralmente captada por uma película cinematográfica estrelada por Brando.

Don Juan de Marco

Quem acompanhou os diálogos dessa película apenas através de sua tradução legendada perdeu um essencial e saboroso detalhe, intimamente relacionado com a questão em torno da qual se desenvolve toda a trama. O Dr. Jack Mickler – personagem representada por Marlon Brando – é, no idioma original do filme, o inglês, ora chamado de psychiatrist, ora de shrink. Na tradução para o português, todavia, tanto psychiatrist quanto shrink são igualmente traduzidos por “psiquiatra”. A perda, na tradução para o português, da especificidade semântica de shrink – to shrink, em inglês, significa “encolher” – é inestimável. Com efeito, a partir dos anos sessenta, nos Estados Unidos, a gíria headshrinker, gradualmente simplificada para shrinker e, depois, para shrink, passou a ser usada para nomear os psiquiatras e, logo, por extensão, psicanalistas e psicoterapeutas em geral. Ora, headshrinkers – encolhedores de cabeça – é expressão classicamente aplicada aos silvícolas que, ao vencer seus inimigos, cortam-lhes as cabeças e diligentemente as encolhem, pondo-as em seguida a decorar a entrada de suas tendas. Se devidamente compreendida, a metáfora proposta por essa gíria é assustadora: psiquiatras, psicólogos, psicanalistas etc. – os “psicocoisas”, segundo um meu paciente que, compreensivelmente, não conseguia distinguir uns de outros – seriam inimigos de seus pacientes e, ao derrotá-los, separando suas cabeças de seus corpos – legítima origem de seus desejos – encolhem-nas e as exibem em seus currículos como troféus do sucesso obtido contra eles.
Armados dessas considerações, voltemo-nos sobre o enredo do filme. O Dr. Jack Mickler é chamado para resgatar um jovem de seus vinte anos que, dizendo-se Don Juan e desiludido com nossos tempos, ameaça jogar-se do alto de um prédio. Mickler é bem sucedido, mas às custas de se dizer caballero, um tal Don Octavio de Flores, e de convidar nosso Don Juan suicida para sua quinta, que, evidentemente, nada mais era do que um hospital para doentes mentais. Lá chegados, tenta medicar o rapaz, mas esse propõe um trato. Não quer ser medicado antes de contar sua história. Se, ao terminar de fazê-lo, Don Octavio – Mickler, naturalmente – entender que ele ainda precisa ser medicado, dá sua palavra de que tomará os remédios. Jack aceita o
acordo, isso para o profundo desagrado do restante da equipe, que passa a pressioná-lo no sentido de medicar o paciente, queira esse ou não. Ou seja, a pressionar Jack para agir como um verdadeiro shrink, abortando o delírio de seu paciente, encolhendo sua cabeça de forma a colocá-la dentro dos limites do considerado “normal”.
Mas, como dizia a expressão latina, necandus necavit necaturum: “quem devia morrer matou quem devia matar”. O delírio de Don Juan é absolutamente encantador, fala de estórias em que os prazeres do amor e do sexo atingem supina expressão... E é Jack que, em vez de encolher a mente de seu paciente, começa a ter a sua “expandida”. Contaminado pelo delírio a que se dispôs a dar ouvidos, Jack começa a colorir o cinzento que, ao longo dos anos, tomara subrepticiamente posse de sua vida. Começa a recuperar o amante que tinha dentro de si. Para o agradável espanto de sua mulher, passa a levar-lhe flores, dar-lhe jóias e, à luz de velas, convidá-la para jantar...
Há um momento em que o dilema “restringir ou expandir a mente” é focado de maneira extremamente jocosa. Jack Mickler, embora hesitante, decide contestar frontalmente o delírio de seu paciente:

– E se eu lhe dissesse que eu não sou Dom Octavio de Flores, mas, sim, um psiquiatra, e que esta não é minha quinta, mas o hospital onde eu trabalho, o que você me diria?"
– Eu lhe diria que você tem uma visão extremamente estreita da realidade! – devolveu Don Juan.

Mas, quase que “em off”, Don Juan consola Jack. Diz-lhe saber perfeitamente que Jack é um psiquiatra e que estavam em um hospital, não numa quinta, mas que, sendo tudo isso transcendentalmente chato, quer continuar contando sua história, sem dúvida mais saborosa e digna de atenção. E Jack, aprofundando o desespero de seus pares, continua a escutá-lo, em vez de o medicar. E, enquanto o faz, segue recuperando a cor de sua vida. Necandus necavit necaturum! Tendo terminado o relato de sua história – tendo satisfeito seu Desejo de Palavra – Don Juan adquire as condições internas necessárias para descartar seu delírio e deixar vir à tona o que anteriormente eclipsara: toda sua idealização da mulher era uma tentativa de compensar a dolorosa realidade da vida de sua mãe. Analogamente ao que ocorreu com Rose, minha paciente das duas e dez, que recuperou sua razão quando eu lhe permiti, durante quarenta minutos, percorrer os meandros da fantasia de que eu a havia desrespeitado, a liberdade de discurso que Jack Mickler deu a Don Juan foi o necessário e o suficiente para que esse último, recuperando dados que havia recalcado, voltasse a fazer uso de sua razão. Após haver injetado em seu psiquiatra uma nova alegria de viver...

A trama de Don Juan de Marco deixa exposto um fato pungentemente real: ainda não há consenso, entre os “psicocoisas”, sobre se devem ser shrinkers ou expanders, sobre se devem encolher ou expandir a cabeça de seus pacientes...

E agora? Como fica você? Que fazer caso queira contar com a ajuda de algum? Como avaliar se ele pretende encolher ou expandir a sua cabeça? Como saber se o mais adequado é que ele faça uma coisa ou outra?

As linhas que seguem pretendem ser de algum auxílio para situar você relativamente a essas questões.

TIPOS DE ESTRATÉGIA PSICOTERÁPICA

Desde os primórdios dos tempos, o ser humano percebeu que, para sua sobrevivência, deveria aprender a manipular não apenas o mundo, mas também sua própria mente.

Até o século XIX, as estratégias dominantes de manipulação psicológica eram de dois tipos. O primeiro, de convencer o indivíduo a esposar pensamentos – e, consoante isso, manifestar comportamentos – que, derradeiramente, remetiam à realização dos desejos de um chefe, via de regra tido como representante de Deus. Quem compulsa o Velho Testamento com algum olhar crítico pode facilmente reconhecer que o Grande Pecado, ali, é a desobediência: a ordem de Jeová para que Abraão, sem questionamentos, se submetesse à ordem de matar seu filho Isaac é soberbo exemplo disso. O segundo desses tipos de estratégia – encarnado pelos festivais – visava a dar vazão, durante tempo e circunstâncias circunscritos, às tensões acumuladas durante o restante período em que a obediência era a norma.

A chegada do século XIX, todavia – como bem demonstra Corbin – “inventou” a individualidade, trazendo consigo uma terceira estratégia de manejo da mente. Essa nova estratégia visava a permitir o surgimento de pessoas que, em vez de meros consumidores acríticos das normas que suas comunidades lhes impunham, deveriam ser capazes de usar liberdade e razão para escolher suas próprias “Tábuas da Lei”. Com efeito, esse foi o primeiro século a permitir, em larga escala, que o ser humano de fato comesse os frutos da Árvore da Ciência do Bem e do Mal. E o papel tentador de Eva coube, em grande parte, à então – hoje não mais – revolucionária Psicanálise.

Essas três estratégias básicas de manipulação da mente ainda hoje sobrevivem e, competindo pela aura da cientificidade, se digladiam, gerando entre os “psicocoisas” dissensos do tipo retratado em Don Juan. Passamos a comentá-las.

As Estratégias de Velha Geração

A Estratégia da Doutrinação

Esse era o tipo de estratégia que monopolizava a vertente “científica” de manipulação da mente antes de Breuer atender Bertha Pappenheim. Seu objetivo não é simplesmente impor a você como agir: é dizer como você deve agir e pensar, ou, se possível – vide Abraão e seu filho Isaac – como você deve agir sem pensar. A Estratégia da Doutrinação não é, meramente, uma estratégia de contenção, é uma estratégia de recalque. Ascânio, se apenas contivesse Marcelo, impedindo-o de brincar com o carrinho de seu irmão Lucas, mas lhe permitisse expressar verbalmente a raiva que essa contenção lhe provocou, não estaria empregando aquela estratégia. Ela é mais ambiciosa. Pretenderia que Marcelo, além de não usar o brinquedo, recalcasse a plena consciência de seu descontentamento e revolta, pois parte do princípio de que certos Desejos de Palavra não devem ser jamais satisfeitos, de que determinados conteúdos mentais – considerados irracionais, imorais, desagradáveis etc. – jamais devem atingir consciência plena, o que apenas acontece no nível da palavra. É, sem dúvida, a estratégia dos shrinkers.

A hoje mais difundida variação desta estratégia se autodenomina Psicologia do Pensamento Positivo, mas antes mereceria ser chamada – façamos jus à língua que a gestou – de Pretending Psychology, ou Psicologia do Faz-de-Conta: sustenta que você só deve permitir acesso à consciência a determinados pensamentos, considerados “positivos”, tipo “hei de vencer”, “eu sou capaz”, “eu sou feliz” etc. e domina assustadoramente a atual literatura chamada de “auto-ajuda”. Um dos principais efeitos da estratégia da doutrinação é criar uma relação falsa do sujeito consigo mesmo e com seu terapeuta. Francisco é exemplo disso:

Errado! (11)

Antes de Francisco ser atendido por mim, passara pelas mãos de um terapeuta cuja atitude, se não fosse trágica, seria cômica. Pedia, por exemplo, que Francisco expressasse suas opiniões sobre sucesso e fracasso e, quando ele o fazia, dizia: – “Errado!”, completando, em seguida, o que, em sua opinião, Francisco deveria pensar. Em pouco tempo, o paciente, que se encontrava em terapia com esse profissional por pressão da família, de quem financeiramente dependia, aprendeu o que o terapeuta queria que ele respondesse e fazia isso, para não se aborrecer.
O “resultado” daquela “terapia” foi que o paciente, pelo menos para uso externo, havia desenvolvido um “falso eu”.

A Estratégia Catártica (ou dos Festivais)

À Estratégia da Doutrinação as sociedades humanas sempre associaram a Estratégia dos Festivais. A forma empregada por Breuer no atendimento de Bertha Pappenheim é a versão “científica” desse segundo tipo de estratégia, que opera em conformidade com o princípio de que certos Desejos de Palavra podem, sim, ter acesso à consciência, mas durante períodos restritos, em situações especiais. A “situação especial” empregada por Breuer foi a hipnose. Durante ela, Bertha dava expressão verbal a conteúdos mentais, que, fora da hipnose, continuavam com acesso barrado à consciência. A Estratégia dos Festivais, hoje co-optada pelos profissionais de saúde psicológica – como, por exemplo, no citado caso de Bertha ou nas chamadas “maratonas psicológicas” – continua sendo empregada em contextos laicos – como, por exemplo, em disputas esportivas de grande carga emocional ou em nosso Carnaval – e religiosos – como sessões de umbanda ou encontros religiosos chamados “carismáticos”. Embora, no contexto profissional – onde toma o nome de “catártica” – a Estratégia dos Festivais possa ser utilizada numa relação a dois, entre terapeuta e paciente, ela, freqüentemente, é utilizada em contextos grupais, que facilitam o estabelecimento dos “estados especiais” favorecedores da catarse. Também as drogas são, freqüentemente, empregadas para favorecê-la, em todos os contextos mencionados: no contexto laico, reina o álcool, soberano; no religioso, tem fama o Santo Daime; no profissional, já teve algum destaque o sódio pentotal, alcunhado “soro da verdade”.

Obtida a catarse, independentemente da ideologia que a patrocine ou da técnica empregada para obtê-la, há uma indiscutível redução de tensão, que colabora para que o sujeito aceda a um nível mais racional e autogestivo de funcionamento psicológico. Diferentemente do que ocorre com a Estratégia da Doutrinação, a dos Festivais – quando não faz uso abusivo de determinadas drogas ou não provoca descontroles de comportamento de conseqüências irreversíveis – por si mesma, não faz mal. Apenas, quando não empregada, como em seguida veremos, em conjunto com uma Terapia de Nova Geração, torna seu “usuário” um dependente do “festival”, pois não recupera nele a capacidade independente de dissolver cotidianamente suas próprias tensões, deixando-o para sempre nas mãos do agente que escolheu para colocá-lo no estado especial em que essa dissolução se faz possível. Embora a História da Psicanálise evite mencioná-lo, a espetacular melhoria inicial de Bertha Pappenheim, obtida pela Estratégia Catártica, foi, até o fim de sua vida, seguida por várias recaídas, algumas requerendo internação.

Sessões catárticas podem ocorrer durante um processo psicoterápico de natureza mais profunda, mas são aspectos marginais, não essenciais do tratamento. Ronaldo passou quatro sessões de sua análise – que durou cerca de cinco anos – fazendo catarse de sua raiva. Vejamos:

Seu Filha da Puta! (12)

Já conhecemos Renato. Eu o atendia quatro vezes por semana, de segunda a quinta, e ele fazia uso do divã (nem todos os pacientes fazem). Numa quinta-feira, começou sua sessão assim:

– Seu filha da puta! Eu não sei nem se você é mesmo psicólogo, ou se você põe esses diplomas aí na parede só pra poder ficar sacaneando as pessoas! Eu botei um patuá em cada porta da minha casa pra você não entrar – seu filha da puta! – mas você entrou assim mesmo! Pera aí, acho que não foi você que entrou em minha casa, fui eu que entrei! Ah, mas não dá pra ter essa raiva toda de mim não, vai você mesmo, seu filha da puta! E você está pensando que vai ficar assim? Não vai, não! Eu estou vendo você correndo, apavorado, pelo meio de um vale – seu filha da puta! – porque tem uma represa atrás de você e ela vai arrebentar, seu filha da puta! E você pensa que é uma represa de água? Não é não – seu filha da puta! – é uma represa de merda e a merda vai enterrar você, seu filha da puta!

Após descarregar fartamente sua raiva sobre mim, Renato partiu para seus pais.

– Tô no alto de um edifício e meu pai está nos meus braços, apavorado porque sabe que eu vou jogar ele lá embaixo! E eu não vou só soltar ele não! Ah, não vou, não! Eu vou empurrar ele com força, assim [faz o gesto], pra ele já sair com velocidade do topo do edifício e se esborrachar mais ainda quando chegar lá embaixo! Desci. Meu pai está esborrachado, cheio de sangue, mortinho. Aí eu pego uma machadinha e começo a picar ele todinho. Todinho! Ele fica bem picadinho. Sabe como? Que nem “stake tartar”, conhece? Pois é, assim! Bem, bem, bem picadinho. Acabei! Mas não estou satisfeito! Ah, já sei!, cago em cima! Isso, cago em cima dele! Vou cobrindo ele de bosta! Mas minha bosta não dá pra cobrir! Não tem problema! Eu volto no dia seguinte e no outro e no outro, até ele ficar totalmente coberto de bosta! Ficou! Caramba! Sobrou um dedinho, inteiro, fora da bosta! Aí, eu pego o dedinho e – crack! – quebro o dedinho do filha da puta [[[[tirar: que havia sobrado!]]]]

Depois do pai, dedicou um tempo a sua mãe.

– Pego a filha da puta pelos pés – estou no meio de uma praça redonda, cercada de postes – e rodo a filha da puta e a cabeça dela vai batendo, com toda força, em cada um dos postes. Rodo muitas vezes, o pescoço dela quebra e a cabeça fica cheia de sangue! Bom! Muito bom! Entendeu bem, seu filha da puta?
Voltou-se ainda, durante alguns minutos para mim, dizendo, em sua linguagem de médico, que iria enfiar seus dedos em meu abdômen e, com suas próprias mãos, levantar meu gradil costal, enfiar a cabeça em minhas vísceras e chupar o meu sangue, experimentando o prazer de senti-lo molhar, morno, as suas bochechas.
Fiquei escutando-o, sem nada dizer, durante toda a sessão. Terminado nosso tempo, apenas comentei:

– Estamos na hora!

Levantou-se um pouco constrangido. Afinal, não é todo o dia que se faz picadinho do pai, se racha a cabeça da mãe, e se chupa o sangue morno do próprio analista. Fomos até a porta, onde nos despedimos com um aperto de mão, enquanto ele dizia:

– Olha, na segunda-feira, não vou poder vir, porque estarei de plantão na residência.
– Combinado – respondi.!

Terça-feira, voltou. Deitou-se no divã e suas primeiras palavras foram:

– Seu filha da puta!

E continuou por aí afora. Foram quatro sessões seguidas da maior descarga de ódio que jamais presenciei durante décadas de atividade como psicoterapeuta. No quinto dia, parecia aliviado. Deitou-se no divã e suas primeiras palavras foram:

– Porra, foi foda, né? E, cara, enquanto eu falava aquelas coisas todas, uma vozinha dentro da minha cabeça ficava repetindo, o tempo todo: “Levanta e enche esse cara de porrada!” E vou te contar uma coisa: se isso tivesse acontecido há uns dois anos atrás, eu tinha levantado e te enchido de porrada!

Como se vê, situações de catarse, a despeito de todo o alívio que podem trazer consigo, implicam um certo risco...

Como se vê, situações de catarse, a despeito de todo o alívio que podem trazer consigo, implicam razoáveis riscos; e tanto para a sujeito da sangria, quanto para seus espectadores. Na verdade, polícia nas ruas e segurança nos bailes é um must do Carnaval... Quem se propuser a patrocinar situações de “psicossangria” deve estar preparado para minimizar os riscos que elas trazem consigo.

Se eu já não estivesse suficientemente seguro – e um erro de cálculo, aqui, traria desagradáveis conseqüências – de que Renato não iria ultrapassar a fronteira que existe entre a palavra e a ação, eu teria intervindo de forma a abortar seu processo de catarse. Meu contínuo silêncio foi como que um aval para que ele fosse em frente na descarga de seus desejos de destruir. Fiz isso por estar acreditando que ele iria restringir-se à dimensão da fala. Felizmente, estava certo: caso não, poderia ter tido uns ossos quebrados.

Terá provavelmente sido por seus perigos potenciais que a estratégia da sangria não invadiu a “literatura auto-ajuda”: sem certos cuidados, ela é perigosa demais.

A Estratégia de Nova Geração (da Autogestão)

Freud, informado por Breuer dos – para a época – espantosos resultados obtidos com o tratamento de Bertha, acabou por perguntar-se: “Ora, por que o paciente deveria ter acesso pleno à representação verbal de determinados conteúdos de seu psiquismo apenas sob circunstâncias especiais? Por que não poderia ele tornar esse acesso algo regular, um elemento rotineiramente integrante de sua vida?” E, com essa pergunta e os esforços que fez para satisfatoriamente respondê-la, inaugurou uma nova geração de estratégias psicoterápicas – a Estratégia da Autogestão – baseada no princípio, já defendido por pensadores como Aristóteles, Terêncio e Nietzsche, de que toda a experiência humana merece incondicional acesso à palavra. Ou, fazendo uso da linguagem por vezes utilizada por esses pensadores, o de que todo o pathos deve ter acesso ao logos.

A Estratégia de Nova Geração expressa uma inversão de valores – a Umwertung aller Werte, de Nietzsche – que tomou vulto durante o século XIX, provocando uma verdadeira “pororoca antropológica”. A partir dessa inversão – ainda não de todo absorvida, como o demonstram as vicissitudes do tratamento de Don Juan e, bem menos sutilmente, a sobrevivente cultura dos talibãs – a palavra “patológico”, pelo menos no que diz respeito a sua dimensão psicológica, deveria deixar de ser empregada como equivalente a “doentio”, “enfermo”. Com efeito, em seu mais fundamental sentido, “ser patológico”, é ser capaz de dar a todos os pathe – o conjunto da experiência humana – seu lugar no logos – no nível da palavra. Ser patológico, portanto, segundo a Estratégia de Nova Geração, passa – embora poucos, ao que parece, disso se hajam dado conta– a constituir paradigma de saúde, não, de doença.


O objetivo da Estratégia de Nova Geração é permitir
o acolhimento de todo o pathos no logos.


Correspondentemente, essa revolução de valores pede que os headshrinkers, os encolhedores de cabeças, sejam substituídos por headexpanders, dispostos a expandi-las, substituição que, como a mera existência da gíria americana denuncia, definitivamente não ocorreu. Com efeito, até hoje, equipes de psicocoisas se dividem sobre se encolhem ou expandem a cabeça de seus Dons Juans. A palavra “louco”, de meu conhecimento, ainda não encontrou etimologia oficial. Permito-me uma hipótese: ela provavelmente deriva de est locutus, expressão latina que significa, simplesmente, “falou”. Est locutus? Falou? É louco! Giordano Bruno e Galileu são testemunhas. Apenas a partir do século XIX – em particular das contribuições de Nietzsche e de Freud – essa postura passou a ser eficazmente contestada... Ao longo deste e de outros capítulos, darei vários exemplos de como eu, particularmente, emprego a estratégia de nova geração.” (p. 109-120)

A única forma de se dizer o que é e o que não é Psicanálise, enquanto se refere a sua aplicação terapêutica é defini-la enquanto estratégia e afirmar-se que pode ser considerada psicanalítica qualquer técnica que tenta tem por objetivo implementar a estratégia que descrevemos acima como “de nova geração”.

De passagem, Na verdade, a aparente dificuldade de se conceituar a prática psicanalítica, nasce, não de uma dificuldade "intrínseca" à tarefa, mas da incompatibilidade entre (1) o interesse científico em que se o faça e (2) o interesse corporativo da IPA em dizer "psicanálise é a técnica que empregam nossos afiliados", não importa que salada técnica pratiquem.

Já pensou se, devidamente esclarecido o que é ou não psicanálise, fica claro que alguns membros NÃO PERTENCENTES À IPA, exercem-na melhor do que alguns dos filiados a ela, todos submetidos a uma milionária formação? Afinal das contas, qual de que vale pertencer a um roster, se ele não influencia as preferências da clientela?

Aliás, é tal interesse corporativo que sustenta a indevida ênfase – cuja irrelevância Eizirik et al. assinala estar sendo cada vez mais reconhecida – que ainda se dá à diferença entre “psicanálise” e “psicoterapia psicanalíticamente orientada” (os esforços feitos por Wolberg, em seu famosérrimo “The Technique of Psychotherapy”, tentando estabelecê-la, são totalmente ridículos).

A diferença entre estas duas, porém, já foi clara, no Brasil: a primeira era o nome da técnica psicoterápica aplicada por MÉDICOS PERTENCENTES À IPA, a segunda era o da praticada por PSICÓLOGAS, NÃO PERTENCENTES À IPA, MAS CASADAS COM AQUELES e, para reforçar o orçamento familiar, deles derivando sua clientela.

1.2. “... que só deve ser aplicada [a psicoterapia de orientação analítica] a partir de um prévio e adequado diagnóstico positivo e diferencial o mais acurado possível do problema que se quiser enfrentar.” (p. 20)

Dois curtos comentários aqui.

Primeiro - Uma boa atividade psicoterápica exige que se faça diagnóstico em três níveis:
(a) Macrodiagnóstico – onde se decide se o transtorno em pauta merece intervenção
a. Apenas médica (psiquiátrica, neurológica, endocrinológica etc.)
b. Apenas psicoterápica
c. Médica e psicoterápica
(b) Mesodiagnóstico - Onde se decide se, em havendo intervenção psicoterápica, deve ser:
a. “rasa” (de tipo comportamental); ou
b. “profunda” (de tipo psicanalítico)
(c) Microdiagnóstico – onde, dentro do enquadre determinado pelos diagnósticos anteriores, se adequa ao particular indivído o(s) procedimento(s) eleito(s) como mais indicado(s) pelo níveis anteriores de diagnóstico.
Segundo – Processos humanos são dinâmicos. O diagnóstico “prévio”, a que se referem os autores, pode exigir revisão: a melhoria de um paciente, por exemplo, pode exigir “mesodiagnosticamente” que se passe de uma abordagem psicoterápica mais “rasa” para outra, mais “profunda”. Aliás, cumpre combater o preconceito que considera as psicoterapias “profundas” (psicanalíticas”) melhores do que outras. A psicoterapia melhor é a que mais se adequa a um paciente.

Aprofundaremos esses dois comentários em nossos encontros. Já temos material para o primeiro.